8 de fevereiro de 2012

Caravana de Artesania em Juiz de Fora - Reflexões de Zildo Flores

DIA 08, QUARTA-FEIRA
Manhã – Parque Halfed



O exercício criativo no Parque, na praça, na rua. O jogo com o espaço, com os passantes e com o fluxo da cidade, ali refletido pelo movimento dos que iam trabalhar, estudar, resolver assuntos do cotidiano, comuns.


De repente, o inesperado, o diferente começa a romper este fluxo...


Primeiro, banquinhos começam a ocupar o centro da praça, interferindo no espaço, criando uma forma circular. Mandala que começa a se formar. O encontro do centro, a criação do núcleo de onde a arte teatral irá se irradiar. Sem a visão, artistas se vêem desafiados a ampliar seus outros sentidos, sua percepção. Caminhar com escuta, com sensação, encontrar o meio, centrar-se para lá chegar. Criar a sintonia com o espaço, com o coletivo e o lugar.


Formas se constroem, círculo que se expande e ganha vida quando objetos cênicos e instrumentos musicais tornam-se traços, pontos e linhas compondo  o segundo aro da mandala... o lugar da cena, lugar da transformação. A praça já não é a mesma... o dia de quem atravessou aquele lugar já não é o mesmo...O cotidiano foi interrompido pela arte, rompeu-se o automatismo com a experiência estética a se iniciar. Lembrança nova a encantar a memória das pessoas que ali estiveram.


Movimentos acontecem dentro desse novo lugar... desse espaço, inédito, artístico, formado dentro de um espaço antigo, comum, talvez até abandonado pela percepção automatizada de cidadãos e passantes. Movimentos acontecem, atraindo olhares, despertando ouvidos e curiosidades. “O que é isso?” “Olha os palhaços!”, “vai ter teatro aqui...”. Frases soltas, largadas no ar...

Artistas movimentam-se, começam a se aquecer. Sons diferentes se misturam aos sons urbanos, anunciando que a arte ocupou aquele lugar.


Uma lira, suas notas, nossas vozes...

Um “Peixe vivo” vai chegando devagar...É com ele que vamos convidando as pessoas do lugar... “Como poderei viver...sem a tua, sem a tua companhia”... Um convite em forma de declaração de amor... artistas afirmando ao público que são eles a razão da existência de sua arte.

Convidados a partilharem do momento de criação, espectadores se aproximam com seus corpos, ou pelo menos com seus olhares e ouvidos. O banco da praça, em que se sentaram, torna-se seu lugar na plateia que surgiu quando a praça virou palco, espaço de atuação... novos sentidos vão sendo construídos para o espaço, a praça, os bancos, o dia, as pessoas e a vida que ali acontece... o lugar da cena, lugar de transformação.


O “peixe vivo” vai nadando pelo lugar... transportado pela voz coletiva, água que lhe dá vida e o torna presente, vai chegando aos ouvidos e à imaginação de quem se permite ouvir e olhar. A praça, o parque, tornando-se oceano da arte teatral... nela vamos desbravando os mares da criação. Alcançando as ilhas dos indivíduos, vamos buscando torná-los continente, em ligação uns com os outros.

Uma nova história começa... uma pequena valsa vai se espalhando pela praça, música misturando-se à paisagem sonora do lugar, vai trazendo em suas notas duas personagens. Uma menina, conduzida por um mascarado, giram pelo espaço, e em torno de si mesmos, convidando olhos, ouvidos e corações a mergulharem em seu mundo, com sua imaginação.

Uma música, uma máscara, a dança pelo espaço. Uma volta, valseada, da menina e o personagem mascarado, pela praça, como um sonho que começa num bailado... um labirinto nasce da ação. Em seu centro, no meio da roda-mandala, a menina está perdida. O seu guia partiu e a deixou a procurar.


Chega um mensageiro, figura flutuando sobre uma roda, poética chegada, vem algo lhe entregar... Ele brinca com a menina, entre a recusa e a entrega, surge a interação. Coroando a brincadeira, um presente lhe é deixado: pequena mala, de onde surge uma surpresa... A menina encontra um novo círculo, pequenino, dentro do maior. Uma bola, transparente, filha da água daquele lugar... A menina brinca, a bola gira e flutua em suas mãos, ao embalo da música que vai surgindo do próprio bailar da bola com a menina. Ora peixe, ora bolha, ora flor, a bola gira e vira em leve movimentar.


Novos personagens chegam... rompendo o silêncio, mudando o fluxo da emoção, vêm pescar nas águas seus peixes e do público sua atenção. Buscando o equilíbrio do espaço e das ações, lançam seus anzóis para fora da ilha-mandala, buscando pegar aquilo que ainda não chegou... pescadores do riso e da poesia, vão encantando olhares passantes, fisgando a curiosidade alheia, que se aguça e faz o olhar se aproximar da roda com mais atenção... dos movimentos ritmados e silenciosos das duas figuras, nossa imaginação vai sendo provocada a entrar naquele mar... Aos poucos, bolas vão chegando ao centro, claves vão surgindo, e do giro no ar, vão passando ao seu mergulhar... peixes artísticos sendo fisgados pelas varas invisíveis dos pescadores do encantar...


Um duelo. Varas-guarda-chuvas tornam-se espadas... os dois palhaços se enfrentam, desafiam a si mesmos e ao público a um mergulho na graça da imaginação. Um duelo abre as portas à tradição... cena clássica, da “morte do palhaço”, ganha vida no centro da roda-ilha-palco-mandala, acontecendo no diálogo entre o conhecido e o inusitado, quando um palhaço tenta ressuscitar a palhaça... uma perna deita-se, um braço levanta; um braço deita-se, suas pernas se estendem para o céu. É o corpo da palhaça, brincando com a morte, como todo artífice desta arte faz... brincar com a vida e com a morte, para dar nova vida ao riso e à sensibilidade humanas. O público acompanha, de longe ou de perto, alguns pescando apenas trechos da cena em andamento, passando em direção ao seu cotidiano, ali interrompido pelo fluxo teatral. Outros, mergulhando na cena inteira, desde o início, fisgados pela curiosidade e desejo de viver nova emoção.

A brincadeira da vida-morte acaba, para outra nascer. De longe, de mundo distante, vai chegando uma sereia, nas ondas da poesia que se instaurou naquela praça, pelo acontecimento teatral.


Ela chega aos poucos, delicada, poética, vibrante, no fluxo das águas invisíveis em que mergulhamos, seguida pelo fluxo visível de seu véu flutuante... passeia pelo espaço, encanta olhares, desperta mais uma vez a curiosidade e o olhar de quem por ali passava... o fluxo do cotidiano já não é o mesmo, interrompido e enriquecido pelo fluxo teatral... de perto ou de longe, pessoas param para olhar, descobrir o que aquela nova figura faz naquele antigo-novo lugar... em seus passos, a personagem-sereia vai chegando ao centro do lugar... do encontro entre personagens, vai nascendo, de leve, vagarosamente, a música, o passo, a ação... o palhaço dirige o fluxo, a cena, o movimento, indicando aos personagens-atores o quê fazer, para onde ir. Vai nascendo nova movimentação...


Girando, em torno da roda-mandala-palco, os artistas vão tocando instrumentos, olhares, ouvidos, corações... da música, lenta, pequenina, vai nascendo nova força e andamento, que, acelerando, vai encontrando mais longe o encantamento a que se propõe... Girando e caminhando, aquele grupo de artistas vai seguindo, andando, indo, até se aproximar do público que de longe acompanhava a história que se contava no ato teatral.

Vão seguindo... A música novamente vai se tornando a água através da qual artistas e espectadores navegam pelo fluxo das emoções, água em que se pesca sentidos, sensibilidades e imaginações; os artistas vão se despedindo, deixando suas marcas nos ouvidos, olhos e corações de quem parou para ver e ouvir e de quem, sem parar, se permitiu encantar enquanto caminhava, passageiro, por ali.


Os artistas seguem para o centro. Trazem novamente a atenção de todos para o centro-roda-mandala teatral, ali criada no centro do local. Finalizam seu ofício, sua arte, seu teatro, com um trecho musical. Agradecem ao público, ao parque, à vida, que sendo maior que a arte, a torna grande, proporcionando a oportunidade e a inspiração para que possamos criá-la, exercitá-la, torná-la realização.




Por Zildo Flores.

Obs. Esta ação fez parte da programação artística Caravana de Artesania, realizada em Juiz de Fora no dia 8/02/2012.

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Reflexões: Caravana de Artesania em Juiz de Fora – fevereiro de 2012

DIA 08/02/2012, QUARTA-FEIRA
Tarde – Praça Antônio Carlos

Nossa conversa se iniciou a partir da proposta de falarmos sobre a experiência artística de cada um, nos lugares em que vive e trabalha.

Coloquei abaixo algumas frases, ditas pelas pessoas presentes, em diferentes momentos desta conversa e que pareceram interessantes:

“O essencial não é a resposta que a arte nos dá, mas as perguntas que ela nos provoca.”
“A vida é maior que a arte. Esta deve estar a serviço daquela.”
“O trabalho como um “meio” e um “fim”. Uma questão importante para o artista se fazer: “essa experiência está servindo como meio para quê?”
“De vez em quando, passar uma rasteira em si mesmo, para deixar o pensamento flexível.”
“Princípios: “Encontrar pessoas, cuidar do encontro e gerar relações mais justas”.
“Se eu quero algo, se eu corro atrás, as coisas chegam, elas acontecem.”
“Até o que “não dá certo” é importante, a gente aprende com isso.”
“As Ciências sociais se propõem a interagir com o social. Na verdade, percebo que o Teatro é que verdadeiramente interage com a sociedade.”
“A vida é o eterno movimento do ser”.

“A relação com o dinheiro muitas vezes atrapalha o trabalho, gera competição e divergências. Mas é possível se trabalhar a partir de outras relações de trabalho, de outra lógica para resolver estas questões.”
“É importante ajudar outras pessoas a conseguirem realizar o que querem e a trabalhar.”

Cada pessoa que participou desta roda, contou um pouco sobre seu percurso de encontro com a arte, formação acadêmica e profissional e sua experiência de atuação no campo artístico, ou em outros campos, mas em diálogo com as artes.

Tais relatos foram nos situando sobre as diferentes visões destas pessoas sobre os lugares onde trabalharam ou trabalham, sua relação com o meio artístico e também algumas de suas dúvidas, conflitos ou descobertas e conquistas relativas ao trabalho teatral, seja ele em caráter amador ou profissional.
Um ponto que se destacou ao longo da conversa foi o da relação entre a atuação artística e a própria história de vida de cada pessoa. Neste sentido, foi possível perceber que esta história é feita de escolhas, realizadas de forma mais consciente ou inconsciente por cada indivíduo, que se vê confrontado por desafios, questões ou circunstâncias que o vão provocando a refletir sobre seus objetivos, desejos e necessidades, às vezes já apontando caminhos e soluções, às vezes somente abrindo espaço dentro de suas próprias almas para descobrir o que irão buscar.

Em alguns momentos, o relato de uma das pessoas trazia respostas ou apontava possibilidades para as dúvidas e conflitos de outra; em outros momentos, tal relato apontava posicionamentos ou ideias diferentes, desvelando que a vida e a arte são fenômenos mais complexos do que se pode limitar a um único modo de se viver, perceber ou agir. Em alguns casos, o encontro com a arte aconteceu como conseqüência de um desejo, de uma busca à qual a pessoa foi levada por outras circunstâncias. Em outros casos, foi este encontro com a arte que provocou novos desejos, uma nova busca, a ser realizada pela pessoa, seja relacionada ao próprio fazer artístico, encarado como escolha profissional e proposta de vida, ou outra busca, em que o fazer artístico vai sendo vivenciado como meio, instrumento ou veículo para se alcançar outros objetivos e propostas.

O diálogo entre as dimensões individual e coletiva da vida foi outro ponto que apareceu como fator importante neste assunto e nesta experiência entre vida e arte. O que seria mais importante: o individual ou o coletivo? O que vem em primeiro lugar? A qual devemos dar mais atenção? Estas são perguntas limitadoras, que nos direcionam para um raciocínio típico do mundo acadêmico, científico, no qual a realidade é fragmentada para ser analisada e explicada. Na verdade, os relatos feitos vão nos mostrando que a realidade é mais complexa, diversificada e articulada do que o raciocínio ou qualquer posicionamento que escolhamos para definir o que ela seja. Não há um mais importante que o outro. Não há um que deve vir em primeiro lugar! Afinal, um coletivo é formado por indivíduos, que fazem parte dele com tudo o que os constitui como seres humanos e interferem na dinâmica do coletivo. E, ao mesmo tempo, um indivíduo é formado pela cultura dos coletivos em que vive ou viveu, sua personalidade individual é influenciada e moldada pelos valores, conhecimentos e práticas dos grupos aos quais se integrou durante sua existência. Mesmo quando escolha opor-se a estes, sua referência, mesmo que para a negação, são tais grupos.

Na arte teatral, o exercício do diálogo entre o individual e o coletivo é sempre presente. Um indivíduo que abandone tudo o que é seu, que se anule em função do coletivo, não pode criar. Não pode exercer sua arte verdadeira, nem descobrir e produzir artisticamente. É um autômato da estética. Um alienado cultural. Ao mesmo tempo, se nunca cede em função do coletivo, do bem comum, não será capaz de fazer um trabalho artístico que tenha sentido e importância para os outros. Se não dialoga com as regras, com objetivos maiores, se não sabe fazer o que é necessário, limitando-se somente ao que quer fazer, sua arte será reflexo de uma dinâmica egocêntrica, narcisista, e sua produção artística dificilmente trará algo novo e significativo para os outros, para os grupos sociais que alcance. E se não reconhece o valor do conhecimento cultural que lhe foi transmitido pela sociedade, desde a linguagem cotidiana até os princípios técnicos e filosóficos da arte que exerce, não consegue aprofundar seu exercício criativo, não consegue desenvolver um pensamento, uma visão acerca da mesma. Arrisca-se a limitar-se a um fazer superficial, desconectado e desenraizado da cultura e da realidade social nas quais atua.

O diálogo entre o individual e o coletivo: este é o caminho do equilíbrio. Equilíbrio dinâmico, que se estabelece diferente em cada nova situação. Um movimento que cada ser aprende a fazer no exercício de criação artística e na relação com a vida através da arte. Movimento em que às vezes se privilegia necessidades e limites individuais, o espaço de si mesmo; e em outras, em que se entrega generosamente ao coletivo, privilegiando os objetivos e demandas que este apresenta.

Por isso, a arte é tão diversificada. Porque vem do sentido que cada artista dá ao seu próprio fazer. Bebe-se na fonte da tradição, daquilo que já foi criado e ensinado ao longo da história da humanidade, em cada povo, de cada lugar. Mas, ao se realizar o ofício artístico, cada artista reinventa a tradição, colocando algo de seu no que lhe foi transmitido. Isto é a criação. Ao mesmo tempo, uma arte que se faça sem raízes, ou pelo menos sem o reconhecimento e valorização destas, é uma arte desconectada, que corre o risco de acontecer sem profundidade ou verdadeira importância.

Reinventar o antigo; enraizar o novo. Movimentos essenciais. Outro diálogo necessário à arte Teatral.
Diálogo. Esta é essência da arte teatral. Da Arte do encontro. Exercitado em nosso encontro na praça, cada qual contou um pouco de sua história, partilhou suas visões, dividiu experiências, perguntas e respostas que vêm lhe provocando ou guiando na relação com a experiência teatral. Em cada lugar, de São Paulo a Minas Gerais, passando por Rio de Janeiro, Bahia, Europa e Brasília, diferentes visões, gerando diferentes relações com o trabalho artístico. Sozinho ou Coletivamente? O que é o melhor? O que é possível? Profissionalmente ou como lazer? Entrega total ou em diálogo com outras profissões? Qual é a escolha de cada pessoa ali presente?
Todas as respostas podem ser possíveis e verdadeiras, porque todos os indivíduos ali representados têm suas trajetórias pessoais, únicas, verdadeiras e igualmente importantes. E dentro de cada história, as escolhas feitas e efetivamente vivenciadas são as que fazem ou fizeram sentido para quem as escolheu. Uma é mais certa que a outra? Um pode mudar a do outro? Perguntas que a arte não se preocupa em determinar, porque acolhe todas as respostas, ao nos ajudar a encontrá-las dentro de nós mesmos e, assim, também buscar lá fora aqueles que delas vão querer compartilhar...

O essencial é garantir o encontro, a experiência e uma prática fortalecida pelo aprendizado, pela elaboração do conhecimento, pela troca de informações, pelo diálogo do ser consigo, do ser com o outro, do coletivo com o ser... diálogos que se articulam na realidade e a partir dela, através de um posicionamento crítico-reflexivo e criativo, que possibilite ao artista não só atuar em cena, como também realizar e transformar a realidade em que sua cena acontece.

Por Zildo Flores


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